quarta-feira, 21 maio, 2025

Ancelotti na Seleção: Como Fica o Futebol Brasileiro?

 

A confirmação de Carlo Ancelotti como futuro técnico da Seleção Brasileira, com previsão de assumir o comando a partir de meados de 2024, após o encerramento de seu vínculo com o Real Madrid, desencadeou uma onda de discussões que transcendem as habituais especulações sobre convocações e esquemas táticos. Uma análise pertinente, trazida à tona pelo comentarista Gustavo Hofman, da ESPN, foca em uma questão fundamental: de que forma o experiente treinador italiano, com um currículo forjado na elite do futebol europeu, perceberá e, crucialmente, valorizará o futebol desenvolvido e praticado dentro das fronteiras brasileiras?

Essa interrogação, como aponta Hofman, não se limita a prever quais jogadores do Brasileirão ou da Libertadores terão chances sob o novo comando. Ela se aprofunda em uma ansiedade latente, sentida de maneira particular pelos atletas que militam em clubes nacionais. “Uma questão que talvez crie uma ansiedade extra nos torcedores e, principalmente, nos jogadores, sobretudo os que atuam no Brasil, é: como Ancelotti verá o futebol que se pratica no Brasil?”, questiona Hofman. Ele prossegue: “De que maneira e qual o peso que ele dará para as coisas que acontecem no Campeonato Brasileiro, na Libertadores, e como ele acha que isso se traduziria num cenário internacional?”. A resposta a essas indagações pode redefinir carreiras e influenciar o mercado.

É natural e esperado que Ancelotti invista tempo na observação direta do cenário brasileiro. Sua agenda, quando liberado dos compromissos com o clube espanhol, deverá incluir visitas a estádios e uma imersão em vídeos de partidas. O objetivo será conhecer de perto jogadores que, atualmente, podem não figurar em seu radar imediato. Hofman sugere uma familiaridade inicial potencialmente restrita. “Convenhamos, ele vai ter pouco conhecimento”, argumenta o comentarista. Ele utiliza o exemplo de Pedro, atacante do Flamengo, para ilustrar seu ponto. A passagem relativamente curta de Pedro pela Fiorentina pode ser a referência mais palpável que Ancelotti possui de um atleta que hoje se destaca no futebol nacional. Essa referência, contudo, pode não abranger todo o desenvolvimento e a importância atual do jogador no contexto brasileiro.

O Mundial de Clubes, especialmente com seu novo formato expandido e com mais participantes, oferecerá a Ancelotti uma vitrine mais ampla para observar talentos de diferentes continentes, incluindo os sul-americanos. Entretanto, Hofman recorda que, na edição anterior do torneio, um confronto direto entre o Flamengo e o Real Madrid, então já sob a batuta de Ancelotti, não se concretizou. Isso sublinha a necessidade de um esforço de observação mais dedicado e contínuo por parte do futuro técnico da Seleção para com o futebol jogado no Brasil.

A preocupação  não reside em um possível conflito de estilos de jogo ou em uma suposta ameaça à “brasilidade” inerente ao nosso futebol. O cerne da questão está na capacidade de adaptação e na demonstração de valor em um nível de exigência internacional muito distinto. “Que que é preciso fazer aqui para que o Ancelotti considere esse jogador bom o suficiente para enfrentar jogadores que, no seu dia a dia de clubes, estão jogando Premier League, La Liga, Serie A, Bundesliga, Champions League?”, pergunta Hofman, delineando o desafio que se impõe aos jogadores brasileiros.

A diferença mais significativa, segundo o comentarista, manifesta-se na “intensidade, ritmo de jogo e capacidade de concentração”. O futebol praticado nos grandes centros europeus e nas principais competições internacionais opera em uma rotação mais alta. A velocidade das transições, a pressão constante sobre o portador da bola e a disciplina tática exigida durante os noventa minutos são aspectos que distinguem esses palcos. O futebol de elite mundial, portanto, impõe uma carga mental e física superior àquela predominantemente encontrada no cenário doméstico brasileiro.

Apesar de reconhecer uma evolução na intensidade e no refinamento tático do futebol brasileiro nos últimos anos – uma melhoria parcialmente atribuída à crescente presença de treinadores estrangeiros com novas metodologias –, Hofman ressalta que uma defasagem ainda persiste. Essa diferença não é trivial. Ela impacta diretamente a preparação de jogadores para o nível internacional e a percepção de seu valor no mercado global.

Diversos fatores estruturais e contextuais contribuem para essa disparidade observada. O calendário do futebol brasileiro é notoriamente exaustivo. O volume excessivo de partidas ao longo da temporada impõe um desgaste considerável aos atletas. Isso, por sua vez, limita o tempo disponível para treinamentos específicos e recuperação adequada.

Adicionalmente, as condições climáticas em muitas regiões do Brasil, com temperaturas elevadas durante boa parte do ano, representam um desafio físico extra. A logística das viagens, especialmente em competições continentais como a Libertadores, também agrava o quadro. “Na América do Sul, então, Libertadores, às vezes você pega dois voos e um ônibus ainda”, exemplifica Hofman, ilustrando as complexidades que os clubes enfrentam, o que contrasta com a maior facilidade de deslocamento na Europa.

Como consequência direta dessas circunstâncias, os jogadores, muitas vezes de forma instintiva, tendem a “dosar a energia” ao longo das partidas e da temporada. As equipes, por conseguinte, demonstram uma oscilação de rendimento mais acentuada. “O time simplesmente cai de ritmo”, observa Hofman, salientando que mesmo equipes mais estruturadas e vitoriosas, como o Palmeiras, não estão imunes a esses períodos de menor intensidade. A comparação com adversários sul-americanos e, de forma ainda mais acentuada, com os europeus, revela que os clubes brasileiros frequentemente dispõem de menos tempo para o trabalho tático e físico aprofundado em campo de treinamento.

Essa realidade intrincada, conforme analisado por Hofman, impõe uma “necessidade extra” aos clubes e jogadores brasileiros. Torna-se imperativo “fazer com que o futebol que se pratica aqui no Brasil, nos nossos clubes, se traduza mais para o futebol global”. O foco aqui não é a mimetização de um estilo específico, mas sim o desenvolvimento da capacidade de competir consistentemente em alta intensidade, mantendo a concentração e a eficácia tática ao longo de toda a partida, em qualquer cenário.

A dificuldade em sustentar um padrão de jogo elevado de forma contínua afeta não apenas o desempenho em competições internacionais, mas também a valorização dos jogadores brasileiros no mercado de transferências. A projeção do rendimento de um atleta do Brasileirão para o exigente futebol europeu torna-se, muitas vezes, uma incógnita maior, o que pode influenciar negativamente os valores das transações.

A superação desses desafios passa por uma reestruturação sistêmica do futebol brasileiro. . A otimização do calendário é um ponto crucial. Isso envolveria não apenas a redução do número total de jogos, mas também um repensar dos horários das partidas, evitando, por exemplo, confrontos às 16 horas durante períodos de calor excessivo. Uma reformulação dos campeonatos estaduais, tornando-os mais enxutos e, paradoxalmente, mais valorizados pela qualidade e menor desgaste, poderia ser uma via.

Outro aspecto fundamental é o investimento em infraestrutura. A qualidade dos gramados é um fator determinante para a prática de um futebol de alta intensidade e menor risco de lesões. “A resposta para tudo não é sintético, a resposta é investir em gramado”, frisa Hofman, defendendo a priorização de gramados naturais de excelência, recorrendo aos sintéticos apenas em situações onde sejam comprovadamente a melhor ou única solução viável.

Finalmente, elevar o padrão competitivo interno é essencial. Isso significa criar condições de trabalho e de competição nos clubes brasileiros que se aproximem mais daquelas encontradas na elite do futebol europeu. Envolve melhor formação de treinadores, intercâmbio de conhecimento e uma cultura de maior exigência e profissionalismo em todos os níveis.

A chegada de Carlo Ancelotti à Seleção Brasileira pode, de fato, funcionar como um catalisador para essas mudanças. Sua presença e seu olhar crítico, moldado por décadas de sucesso no mais alto nível, podem incentivar uma reflexão mais profunda e ações concretas por parte de dirigentes, clubes e da própria confederação. O objetivo não seria apenas fornecer jogadores mais bem preparados para a Seleção, mas fortalecer a competitividade geral do futebol brasileiro, elevando seu padrão e sua valorização no cada vez mais exigente cenário global. O desafio está lançado, e a resposta do futebol brasileiro a ele será determinante para seu futuro.


Marlus Pasinato, 10 de maio de 2025, www.libertadores.com.br

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